Tema de minha monografia de especialização, a leitura jovem nos fornece importantes elementos para compreender os conflitos, os mecanismos e processos relativos à adolescência. Em meu trabalho me dediquei especialmente em apontar os recursos de tradução do sexual encontrados nesses livros, mas Contardo Calligaris apresenta uma outra análise bastante interessante no artigo que se segue:
Adoráveis vampiros
O adolescente é uma espécie de lobisomem que sonha coma sublime compostura dos vampiros
Os vampiros estão conosco há séculos, mas eles entraram mesmo na cultura popular jovem no início dos anos 1980, com a onda "dark" e a cena "gótica".
Logo, filmes e seriados inventaram o vampiro abstinente ou "vegetariano", que luta contra seus semelhantes e protege os humanos. Com isso, o vampiro deixou de povoar nossos pesadelos e se tornou objeto de sonhos e desejos.
Mas por que especialmente uma adolescente gostaria de amar ou, quem sabe, de ser um vampiro? Para responder, basta ler a maravilhosa saga escrita por Stephenie Meyer, que já conquistou milhões de leitores pelo mundo afora. Os dois primeiros volumes, ""Crepúsculo" e "Lua Nova", já existem em português (ed. Intrínseca); o terceiro ("Eclipse") e o quarto ("Amanhecer") não vão tardar.
Também, na semana passada, estreou no Brasil a versão cinematográfica de "Crepúsculo" (gostei, embora menos do que dos livros).
Enfim, só para lembrar: a saga conta a história de Bella, uma adolescente que se apaixona por Edward, um colega de classe que é diferente dos demais- entre outras coisas, como ela descobre, por ele ser um vampiro. Claro, os amores entre humanos e vampiros são complicados. Por exemplo, os transportes da paixão podem ser perigosos (em português, ninguém duvidará que, à força de desejar, um dos amantes possa chegar a comer o outro). Isso, sem contar o descompasso pelo qual o vampiro permanecerá jovem para sempre, enquanto o humano envelhecerá. E uma pergunta para a qual não encontrei resposta: será que vampiro e humano podem se reproduzir sexualmente? Qual é o resultado do cruzamento?
Os românticos lerão na saga uma linda história em que o amor ultrapassa diferenças extremas e, por isso mesmo, deve transformar radicalmente os dois amantes. Outros pensarão nas situações em que um amante abnega seu amor e se separa pelo bem do amado ou da amada (se é que esse desprendimento é possível no amor, será que alguém pode aceitar ser abandonado pelo seu próprio bem? Questão abstrata? Nem tanto: pense nos casos em que um dos dois se descobre portador de uma doença transmissível e potencialmente letal).
Pergunta: Edward tem muito charme, mas por que uma adolescente se apaixonaria por um vampiro e ambicionaria se transformar, ela mesma, em vampiro? Há uma longa lista de razões pelas quais um humano, e sobretudo um adolescente, poderia gostar de ser vampiro, mas a mais óbvia é que os vampiros conseguem crescer, acumular experiência, viver intensamente a eternidade inteira, tudo isso sem ser escravos de um corpo que, além de mortal, é sempre, por assim dizer, excessivo- um pouco asqueroso.
O adolescente, empurrado para a bulimia por seu crescimento desordenado, se fecha na anorexia (ou tenta vomitar o que comeu) porque a perspectiva de ter um dia um corpo adulto lhe inspira repulsa: os corpos adultos são vulgares, com seu cheiro, seus roncos de barriga e de sono, suas bocas abertas mastigando e, na hora do desejo, a vontade de enfiar mãos e órgãos nos suores entre pernas e orifícios, ou mesmo de misturar línguas, salivas e bocas. Convenhamos: uma mordida no pescoço seria muito mais elegante.
Os lobisomens (que chegam no segundo volume da saga de Meyer e, portanto, estarão no próximo filme) devoram seus alimentos, desmaiam na hora de dormir e estão sempre próximos de perder o controle de si.
O adolescente é um lobisomem que sonha com a compostura dos vampiros, os quais, ao contrário, não comem, não precisam respirar nem dormir, exalam um cheiro e um hálito sublimes porque, gélidos, eles não carburam, não apodrecem, não defecam (aliás, será que urinam?).
Em suma, o vampiro é livre das indignidades dos organismos vivos, ele não precisa daqueles envergonhados "momentos humanos" em que Bella se esconde de Edward para cuidar de seu corpo (carcaça?).
Não sei se Bella se tornará ou não um vampiro (saberemos, imagino, no fim da saga). Mas estou convencido de que muitos (adolescentes e adultos) estão contemplando essa possibilidade.
É que faz bastante tempo que a gente procura um jeito de não ser "apenas" um corpo mortal, vulgar e malcheiroso. Já experimentamos de tudo: desde a fé na existência autônoma da alma até a depilação a laser, o desodorante e o fio dental três vezes por dia. Por que não o vampirismo? Poderia ser um propósito para o ano novo.
Contardo Calligaris - 25 de dezembro de 2008